segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O circuito da edição numa breve ficção, por César Adão



 O outono instalou-se na cidade de Lisboa. Numa pequena sala de um apartamento no Saldanha, os sons nocturnos da cidade chegavam abafados. Uma autora nunca publicada estava prestes a concluir o seu manuscrito, mas vivia uma última crise criativa. Na página número 432 desse manuscrito, desenrolava-se a seguinte cena:
«1456. Há dezasseis dias que a expedição partira de Lisboa, enviada pelo Infante D. Henrique. Eram três caravelas, capitaneadas por Diogo Gomes. Na primeira caravela a avistar uma das ilhas do arquipélago que viria a ser baptizado com o nome de Cabo Verde, a tripulação debatia-se com sentimentos contraditórios. O assombro perante a expectativa de uma descoberta iminente misturava-se com um rol de enigmáticas experiências sensoriais, que a tripulação atribuía ao domínio do sobrenatural: os sons do mar e da costa eram difusos, e por momentos fazia-se um silêncio tal que todos julgavam ter ficado surdos; o próprio mar e o céu desapareciam e voltavam a aparecer com uma nova configuração, e ora se mostravam exuberantes , ora pardacentos. Estiveram horas assim. »
A autora ultrapassa o bloqueio criativo com um acesso de fulgor e exuberância.
«E eis que surge a barlavento uma embarcação de piratas mouros. A abordagem está presa por momentos. A aproximação foi furtiva e silenciosa. A batalha anuncia-se. »
O manuscrito está pronto e é enviado para uma editora. Mantém-se durante dois meses numa pilha de dezenas de outros manuscritos. Resgatando-o dessa pilha, uma assistente editorial lê-o, de uma assentada, numa noite de inverno, e está decidida a propôr a sua publicação na reunião do dia seguinte.
«As águas agitaram-se e todo o mundo tremeu. Mouros e cristãos suspenderam o inícia da sua refrega sangrenta. Sem saberem bem porquê, uns e outros sentiram que a sorte de todos se jogaria nos momentos seguintes, como se cada um dos seus deuses lhes falasse ao coração. E assim se deixaram ficar ao sabor das vagas. Havia tempo para dar vazão às lâminas e mosquetes. Os deuses falam antes dos homens.»
 E nem um silvo se escutava na página 441. Enquanto isso, na reunião da editora, o futuro do manuscrito era decidido.
«Júpiter, o mais antigo e importante dos deuses, chamara os seus pares ao Olimpo, para decidir sobre o futuro dos portugueses. E como falou primeiro, deixou clara a sua posição: esse povo bravo, que sobreviveu a inúmeras provações, demonstrou já que merece a sorte, pois esta deve sorrir aos audazes».
O Sr. Ferreira, director do departamento editorial começa por defender que a editora deve apostar num romance histórico de um novo autor português, porque os sinais do mercado apontam para uma boa receptividade do género, e é também a altura oportuna para usufruir de um fundo estatal, que por intermédio de uma Comissão Comemorativa de uma efeméride histórica, se encontra disponível.
«Baco, petulante e temperamental, insurge-se. A inveja corrói os seus sentimentos para com a expedição Lusitana. Se os portugueses afrontam os deuses, na sua condição de mortais, devem conhecer a sua ira. O seu destino só pode ser a morte, a única pena justa para a sua afronta.»
O Marcelo, assistente editorial, esboça um protesto. As suas sugestões editoriais serão relegadas para segundo plano, caso a publicação deste romance histórico seja aprovada. Argumenta que o mercado está saturado de romances históricos, e que nada lhes diz que este venha a ter sucesso.
«Júpiter concede a palavra final a Vénus, que sente que a epopeia dos povo português deverá ser ditosa.»
 A Joana, assistente editorial, é chamada a defender o porquê da sua escolha. Nas suas palavras, o romance é consistente. Evoca a coragem de um povo. Tem personagens grandiosas e cenários luxuriantes. É uma metáfora do nosso tempo. A história de um povo oprimido e encurralado que soube superar-se. E a argumentação vinga. A publicação é aprovada.
 O romance é submetido a outro editor, que depois de o analisar o remete de novo para a autora, com as devidas sugestões.  A autora, à luz do candeeiro, na sua sala daquele apartamento no Saldanha, refaz certas passagens. Burila algumas passagens e descrições. E no manuscrito sucede o seguinte:
«No retorno à Pátria, vivem-se momentos de terror. A tripulação acordou para um novo dia com novas roupas e novas formas de falar. O aspecto da caravela alterara-se durante a noite. A própria costa, palmilhada com o rigor de anos de navegação por cabotagem parecia, à vinda, estar diferente. O capitão não disfarçou o seu pavor: deitou ao mar sextantes e astrolábios, acusando os cartógrafos de bruxaria. E a tripulação das três caravelas andava taciturna, convencida que o próprio diabo montara vigília a essa empresa.»
Um revisor, semanas depois, trabalha o manuscrito. Esfrega os olhos que lhe ardem, quando termina a tarefa, e reenvia o trabalho à editora. E assim sucede no interior do manuscrito, quando a expedição já se encontra ao largo da costa do Alentejo:
«Havia na caravela um grumete de Setúbal que se exprimia mal. Cada palavra sua saía açoitada e deformada, e era alvo de chacota de todos quanto o escutavam. Sempre que falava, alguém o corrigia, poir entre risos e zombaria. Nessa tarde, depois de uma sesta à socapa no interior de um bote, surgiu a falar bem. E perante o assombro de todos quanto o ouviam, a sua expressão saía clara e fluida, como a de um lente de uma universidade. Vendo nesta ocorrência mais um manifesto do maligno, o capitão voltou a perder a paciência, e antes que o próprio diabo espantasse e amotinasse as três caravelas, ordenou que o grumete fosse mandado para o porão a pão e água, onde ficou até ao fim da viagem sem perceber o que lhe sucedera. Quando chegou a Lisboa, era o único a sofrer dos primeiros sintomas de escorbuto.»
 O manuscrito está agora ao cuidado de um paginador, que lhe decide a fonte, o tamanho e a forma como se espraia por cada uma das páginas em branco, no monitor do seu posto. Esta etapa é sentida da seguinte forma, na nossa já conhecida aventura:
«Tendo a nossa frota regressado a Portugal, estava um dos marinheiros no cenário idílico da Serra da Arrábida. Ao seu lado estava a sua amada, e brincavam a adivinhar a forma das nuvens, deitados de costas. Ela pedia-lhe que prometesse que não voltaria ao mar, e ele respondia que para se casaram ele teria de voltar a desafiar os abismos do mar, em busca de fortuna. Ela ficou triste e permaneceram em silêncio. Ela perguntou-lhe o que julgava ele ver numa nuvem que passava ao largo. Ele respondeu que a nuvem parecia zangada, e que por isso via nela o pai da rapariga, se descobrisse que andavam os dois sós a passear pela Serra. Riram.»
 Nesse momento, o paginador decide separar os amantes de página.
«O marinheiro pegou por instantes no sono, e quando acordou viu-se sozinho, na serra imensa. Chamou-a, mas ela não respondeu. Sentiu uma enorme solidão. Pensou que talvez fosse esse mesmo o seu destino. A solidão de todas as serras e mares. Decidiu voltar a Lisboa. Em breve haveria novas expedições e convinha andar por perto quando fosse tempo de embarcar.»
Fazendo horas extraordinárias, o departamento de marketing reúne com o desiger da capa e da contracapa. Discute-se o aspecto gráfico do livro que irá nascer, os seus canais de promoção, a melhor forma de falar ao seu público-alvo. Discute-se o timing certo para o colocar nas livrarias e que materiais deverão acompanhar a publicação: marcador, posters, roll up. Discute-se, enfim, a fórmula certa para vender o futuro livro. E sucede nas páginas do manuscrito o seguinte:
«Eneias, que acompanhava por benção de El Rei todas as viagens dos portgueses a terras ignotas, recolheu cansado ao leito, numa noite em que a lua se escondia e o mar se mostrava monótono. Teve estranhos sonhos.  Sonhou com uma reunião de trabalho, no futuro, em que se passara horas a discutir a melhor forma de vender um livro. No dia seguinte contou o seu sonho a outro comerciante que viajava na caravela.
- E ficaram horas nisto. A discutir como se vende um livro.
- Um livro? Como a bíblia, da Santa Missa?
- Um livro, sim. Mas em vez de saírem, de o venderem, ficaram horas sentados, a falar sobre a melhor forma de o fazerem.
- Ora, o mar confunde qualquer um, e o inimigo arma estranhas feitiçarias ao abrigo do sonho.»
Certo dia, Júpiter, perdão, o Sr. Ferreira, Director Editorial, convocou uma reunião de emergência. A Comissão Comemorativa nomeada pelo estado suspendera o pagamento de uma prestação do dinheiro que serviria para custear a edição do livro, e rebentara na imprensa um escândalo pelo desvio de fundos nessa mesma Comissão. Até que a situação fosse resolvida, o trabalho editorial em torno do livro ficaria suspenso.
«A expedição achava-se de novo em terra. Um espião pusera o capitão ao corrente de ordens de El Rei para voltarem à Pátria. Reis e mercadores não chegavam a acordo para o financiamento de novas viagens. A tripulação deixou-se ficar por terra, a embebedar-se, por casas e bairros mal afamados. E passaram nisto semanas. Um dia, um dos marinheiros é despertado a balde de água por uma prostituta, no Cais do sodré. Ela anuncia-lhe, com rasgado sorriso, que é tempo de ele voltar a partir. Diz-se pela cidade que um rico comerciante de Génova custeou uma nova expedição, e o povo de Lisboa, ocioso, já pára pela Ribeira das Naus, a assistir aos preparos de uma nova aventura.»
O livro chega finalmente à gráfica. O barulho das máquinas é ensurdecedor: impressoras, guilhotinas, encadernadoras e empilhadoras. Fazem e imprimem chapas e cadernos, cortam rente, cosem, compilam, fecham.  Uma enorme guilhotina surge, num momento importante do livro.
«E estavam em torno de uma mesa, graves, portugueses e espanhóis. Discutiam há horas. As comitivas de ambos os lados dividiam a desconfiança dos seus olhares pelas cartas do mundo dispostas na mesa e pela comitiva contrária. O acordo estava iminente. De repente, uma enorme lâmina surgiu do céu, e foi cortar ao meio a sala, a mesa e o mapa do mundo, dividindo portugueses e espanhóis que fugiam com grande temor e tumulto para cada lado. E todos acharam que o sucedido se devia à ira divina, que vinha castigar a cobiça dos dois povos, que se achavam no direito de dividir entre si, a meias, os despejos da obra de Deus.»
E sucedeu também assim, quando a obra começou a ser reproduzida:
«Numa noite calma, um marinheiro combatia os solavancos da caravela com o gosto azedo de uma garrafa de zurrapa. Não havia nada a vigiar. A escuridão engolia o mar e o céu. De repente, o marinheiro teve uma visão que o iria perseguir para o resto dos seus dias: viu passar ao largo da caravela uma caravela em toda igual à sua. Mas o maior terror foi quando se viu a si próprio, pálido e espantado, de garrafa na mão, a olhar para o lado de cá, na caravela que passava. E quando tentou esquecer o sucedido, atribuindo a isto o efeito da má qualidade da zurrapa, sucedeu o mesmo uma e outra vez, até que o marinheiro fugiu para o ponto mais profundo do convés. Não sonhou sequer em relatar o que aconteceu ao capitão, que do alto da sua cólera ainda havia de largar borda fora toda a pinga da caravela, e de o deixar dias e noites no porão, a pão e água.»

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