O outono instalou-se na cidade de Lisboa. Numa
pequena sala de um apartamento no Saldanha, os sons nocturnos da cidade
chegavam abafados. Uma autora nunca publicada estava prestes a concluir o seu
manuscrito, mas vivia uma última crise criativa. Na página número 432 desse
manuscrito, desenrolava-se a seguinte cena:
«1456. Há dezasseis
dias que a expedição partira de Lisboa, enviada pelo Infante D. Henrique. Eram
três caravelas, capitaneadas por Diogo Gomes. Na primeira caravela a avistar
uma das ilhas do arquipélago que viria a ser baptizado com o nome de Cabo
Verde, a tripulação debatia-se com sentimentos contraditórios. O assombro
perante a expectativa de uma descoberta iminente misturava-se com um rol de
enigmáticas experiências sensoriais, que a tripulação atribuía ao domínio do
sobrenatural: os sons do mar e da costa eram difusos, e por momentos fazia-se
um silêncio tal que todos julgavam ter ficado surdos; o próprio mar e o céu
desapareciam e voltavam a aparecer com uma nova configuração, e ora se mostravam
exuberantes , ora pardacentos. Estiveram horas assim. »
A autora ultrapassa o
bloqueio criativo com um acesso de fulgor e exuberância.
«E eis que surge a
barlavento uma embarcação de piratas mouros. A abordagem está presa por
momentos. A aproximação foi furtiva e silenciosa. A batalha anuncia-se. »
O manuscrito está
pronto e é enviado para uma editora. Mantém-se durante dois meses numa pilha de
dezenas de outros manuscritos. Resgatando-o dessa pilha, uma assistente
editorial lê-o, de uma assentada, numa noite de inverno, e está decidida a
propôr a sua publicação na reunião do dia seguinte.
«As águas agitaram-se
e todo o mundo tremeu. Mouros e cristãos suspenderam o inícia da sua refrega
sangrenta. Sem saberem bem porquê, uns e outros sentiram que a sorte de todos
se jogaria nos momentos seguintes, como se cada um dos seus deuses lhes falasse
ao coração. E assim se deixaram ficar ao sabor das vagas. Havia tempo para dar
vazão às lâminas e mosquetes. Os deuses falam antes dos homens.»
E nem um silvo se escutava na página 441.
Enquanto isso, na reunião da editora, o futuro do manuscrito era decidido.
«Júpiter, o mais
antigo e importante dos deuses, chamara os seus pares ao Olimpo, para decidir
sobre o futuro dos portugueses. E como falou primeiro, deixou clara a sua
posição: esse povo bravo, que sobreviveu a inúmeras provações, demonstrou já
que merece a sorte, pois esta deve sorrir aos audazes».
O Sr. Ferreira,
director do departamento editorial começa por defender que a editora deve
apostar num romance histórico de um novo autor português, porque os sinais do
mercado apontam para uma boa receptividade do género, e é também a altura
oportuna para usufruir de um fundo estatal, que por intermédio de uma Comissão
Comemorativa de uma efeméride histórica, se encontra disponível.
«Baco, petulante e temperamental, insurge-se. A inveja
corrói os seus sentimentos para com a expedição Lusitana. Se os portugueses
afrontam os deuses, na sua condição de mortais, devem conhecer a sua ira. O seu
destino só pode ser a morte, a única pena justa para a sua afronta.»
O Marcelo, assistente
editorial, esboça um protesto. As suas sugestões editoriais serão relegadas
para segundo plano, caso a publicação deste romance histórico seja aprovada.
Argumenta que o mercado está saturado de romances históricos, e que nada lhes
diz que este venha a ter sucesso.
«Júpiter concede a palavra final a Vénus, que sente que a
epopeia dos povo português deverá ser ditosa.»
A Joana, assistente editorial, é chamada a
defender o porquê da sua escolha. Nas suas palavras, o romance é consistente.
Evoca a coragem de um povo. Tem personagens grandiosas e cenários luxuriantes.
É uma metáfora do nosso tempo. A história de um povo oprimido e encurralado que
soube superar-se. E a argumentação vinga. A publicação é aprovada.
O romance é submetido a outro editor, que
depois de o analisar o remete de novo para a autora, com as devidas sugestões. A autora, à luz do candeeiro, na sua sala
daquele apartamento no Saldanha, refaz certas passagens. Burila algumas
passagens e descrições. E no manuscrito sucede o seguinte:
«No retorno à Pátria, vivem-se momentos de terror. A
tripulação acordou para um novo dia com novas roupas e novas formas de falar. O
aspecto da caravela alterara-se durante a noite. A própria costa, palmilhada
com o rigor de anos de navegação por cabotagem parecia, à vinda, estar
diferente. O capitão não disfarçou o seu pavor: deitou ao mar sextantes e
astrolábios, acusando os cartógrafos de bruxaria. E a tripulação das três
caravelas andava taciturna, convencida que o próprio diabo montara vigília a
essa empresa.»
Um revisor, semanas
depois, trabalha o manuscrito. Esfrega os olhos que lhe ardem, quando termina a
tarefa, e reenvia o trabalho à editora. E assim sucede no interior do
manuscrito, quando a expedição já se encontra ao largo da costa do Alentejo:
«Havia na caravela um grumete de Setúbal que se exprimia
mal. Cada palavra sua saía açoitada e deformada, e era alvo de chacota de todos
quanto o escutavam. Sempre que falava, alguém o corrigia, poir entre risos e
zombaria. Nessa tarde, depois de uma sesta à socapa no interior de um bote,
surgiu a falar bem. E perante o assombro de todos quanto o ouviam, a sua
expressão saía clara e fluida, como a de um lente de uma universidade. Vendo
nesta ocorrência mais um manifesto do maligno, o capitão voltou a perder a
paciência, e antes que o próprio diabo espantasse e amotinasse as três
caravelas, ordenou que o grumete fosse mandado para o porão a pão e água, onde
ficou até ao fim da viagem sem perceber o que lhe sucedera. Quando chegou a
Lisboa, era o único a sofrer dos primeiros sintomas de escorbuto.»
O manuscrito está agora ao cuidado de um
paginador, que lhe decide a fonte, o tamanho e a forma como se espraia por cada
uma das páginas em branco, no monitor do seu posto. Esta etapa é sentida da
seguinte forma, na nossa já conhecida aventura:
«Tendo a nossa frota regressado a Portugal, estava um dos
marinheiros no cenário idílico da Serra da Arrábida. Ao seu lado estava a sua
amada, e brincavam a adivinhar a forma das nuvens, deitados de costas. Ela
pedia-lhe que prometesse que não voltaria ao mar, e ele respondia que para se
casaram ele teria de voltar a desafiar os abismos do mar, em busca de fortuna.
Ela ficou triste e permaneceram em silêncio. Ela perguntou-lhe o que julgava
ele ver numa nuvem que passava ao largo. Ele respondeu que a nuvem parecia
zangada, e que por isso via nela o pai da rapariga, se descobrisse que andavam
os dois sós a passear pela Serra. Riram.»
Nesse momento, o paginador decide separar os
amantes de página.
«O marinheiro pegou por instantes no sono, e quando acordou
viu-se sozinho, na serra imensa. Chamou-a, mas ela não respondeu. Sentiu uma
enorme solidão. Pensou que talvez fosse esse mesmo o seu destino. A solidão de
todas as serras e mares. Decidiu voltar a Lisboa. Em breve haveria novas
expedições e convinha andar por perto quando fosse tempo de embarcar.»
Fazendo horas
extraordinárias, o departamento de marketing reúne com o desiger da capa e da
contracapa. Discute-se o aspecto gráfico do livro que irá nascer, os seus
canais de promoção, a melhor forma de falar ao seu público-alvo. Discute-se o
timing certo para o colocar nas livrarias e que materiais deverão acompanhar a
publicação: marcador, posters, roll up. Discute-se, enfim, a fórmula certa para
vender o futuro livro. E sucede nas páginas do manuscrito o seguinte:
«Eneias, que acompanhava por benção de El Rei todas as
viagens dos portgueses a terras ignotas, recolheu cansado ao leito, numa noite
em que a lua se escondia e o mar se mostrava monótono. Teve estranhos
sonhos. Sonhou com uma reunião de
trabalho, no futuro, em que se passara horas a discutir a melhor forma de
vender um livro. No dia seguinte contou o seu sonho a outro comerciante que
viajava na caravela.
- E ficaram horas nisto. A discutir como se vende um livro.
- Um livro? Como a bíblia, da Santa Missa?
- Um livro, sim. Mas em vez de saírem, de o venderem,
ficaram horas sentados, a falar sobre a melhor forma de o fazerem.
- Ora, o mar confunde qualquer um, e o inimigo arma
estranhas feitiçarias ao abrigo do sonho.»
Certo dia, Júpiter,
perdão, o Sr. Ferreira, Director Editorial, convocou uma reunião de emergência.
A Comissão Comemorativa nomeada pelo estado suspendera o pagamento de uma
prestação do dinheiro que serviria para custear a edição do livro, e rebentara
na imprensa um escândalo pelo desvio de fundos nessa mesma Comissão. Até que a
situação fosse resolvida, o trabalho editorial em torno do livro ficaria
suspenso.
«A expedição achava-se
de novo em terra. Um espião pusera o capitão ao corrente de ordens de El Rei
para voltarem à Pátria. Reis e mercadores não chegavam a acordo para o
financiamento de novas viagens. A tripulação deixou-se ficar por terra, a
embebedar-se, por casas e bairros mal afamados. E passaram nisto semanas. Um
dia, um dos marinheiros é despertado a balde de água por uma prostituta, no
Cais do sodré. Ela anuncia-lhe, com rasgado sorriso, que é tempo de ele voltar
a partir. Diz-se pela cidade que um rico comerciante de Génova custeou uma nova
expedição, e o povo de Lisboa, ocioso, já pára pela Ribeira das Naus, a
assistir aos preparos de uma nova aventura.»
O livro chega
finalmente à gráfica. O barulho das máquinas é ensurdecedor: impressoras,
guilhotinas, encadernadoras e empilhadoras. Fazem e imprimem chapas e cadernos,
cortam rente, cosem, compilam, fecham.
Uma enorme guilhotina surge, num momento importante do livro.
«E estavam em torno de
uma mesa, graves, portugueses e espanhóis. Discutiam há horas. As comitivas de
ambos os lados dividiam a desconfiança dos seus olhares pelas cartas do mundo
dispostas na mesa e pela comitiva contrária. O acordo estava iminente. De
repente, uma enorme lâmina surgiu do céu, e foi cortar ao meio a sala, a mesa e
o mapa do mundo, dividindo portugueses e espanhóis que fugiam com grande temor
e tumulto para cada lado. E todos acharam que o sucedido se devia à ira divina,
que vinha castigar a cobiça dos dois povos, que se achavam no direito de
dividir entre si, a meias, os despejos da obra de Deus.»
E sucedeu também
assim, quando a obra começou a ser reproduzida:
«Numa noite calma, um
marinheiro combatia os solavancos da caravela com o gosto azedo de uma garrafa
de zurrapa. Não havia nada a vigiar. A escuridão engolia o mar e o céu. De
repente, o marinheiro teve uma visão que o iria perseguir para o resto dos seus
dias: viu passar ao largo da caravela uma caravela em toda igual à sua. Mas o maior
terror foi quando se viu a si próprio, pálido e espantado, de garrafa na mão, a
olhar para o lado de cá, na caravela que passava. E quando tentou esquecer o
sucedido, atribuindo a isto o efeito da má qualidade da zurrapa, sucedeu o
mesmo uma e outra vez, até que o marinheiro fugiu para o ponto mais profundo do
convés. Não sonhou sequer em relatar o que aconteceu ao capitão, que do alto da
sua cólera ainda havia de largar borda fora toda a pinga da caravela, e de o
deixar dias e noites no porão, a pão e água.»