Português, língua de distância
Lídia Jorge *
É muito perigoso o nativo de uma língua discorrer sobre ela. Quando uma pessoa menos se apercebe, já invocou os maiores poetas da nação e já lhe chamou de tudo o que de melhor existe em termos de imagem e tropo - rio de mel, campo de flores, doce teta, mãe eterna. Não admira. A língua, na plenitude do seu uso, é um instrumento da inconsciência. Pensar nela a partir de dentro, só pode resultar no agradecimento da sua virtude e descrição da sua bondade. Fale-se da língua materna e o mais universalista fica patriota, o mais estrangeirado sente-se saudoso, o mais irónico torna-se reverencial. Por isso mesmo, não costuma ser um erro escutar o que os outros, os das outras línguas, dizem da nossa própria.
Nesse domínio, existe uma asserção atribuída a Cervantes bastante reveladora. Terá o autor de El Quijote dito, ou mesmo deixado escrito, que "O Português é o Espanhol sem ossos". Os próprios portugueses o repetem numa versão porventura mais próxima do original - "El portugués es el castellano sin huesos" - para melhor saborearem a ironia ou o despeito que desencadeia.
Claro que existe neste raciocínio uma redução própria de vizinhos bastante curiosa, mas não me parece que esta seja uma afirmação propriamente difamatória, e além do mais contém em si elementos que permitem iluminar traços distintivos daquilo que é a nossa fala. É que, para os outros - e a língua nasce em nós mas dirige-se para os outros - antes de ser um sentido, ela é, primeiro que tudo, um som. E não deixa de ser verdade que em comparação com as vértebras e as formações galopantes da língua espanhola de Espanha, a língua portuguesa desdobra-se como um corpo falado suave. A imagem é primitiva, e pode roçar o simplório, mas é verdade que, comparando as duas mais importantes línguas ibéricas, em termos de som, o espanhol contém no seu andamento uma espécie de cavalo a trote, várias patas movendo-se rápida e sacudidamente, sua crina altiva, sua unha protegida e ferrada. Enquanto que o som do português, nasalado e gutural, íntimo e grave, por vezes soturno, como o russo ou o polaco, desenvolve-se como a modulação dum líquido que corre. Claro que há muitos tipos de líquido e muitos tipos de curso. Nós, pela proximidade, como não poderia deixar de ser, associamo-lo à ondulação do mar. Um vaivém contínuo e grave, rápido com ar de lento, intenso com som de esbatido, faz do seu fluxo frásico, um corpo quase horizontal. Deduza-se o que é possível deduzir da eventual asserção de Cervantes - O português nada tem a ver com o espanhol, nem dele faz parte. Ou vice-versa. As estruturas profundas das duas línguas são diferentes, as suas naturezas enquanto fala e idioma, são distintas. Essa distinção é de vária ordem e pode ser descrita. Mas para simplificar a poética ensina que existem metáforas. Assim sendo, aceite-se que a ossatura do Português é feita de uma outra matéria com outra consistência. Ou que à consistência suave do seu som, corresponda em termos de vitalidade, uma outra energia.
Só assim se compreenderá que o português, falado por menos de um milhão de indivíduos, na altura dos Descobrimentos, se tenha expandido a ponto de se transformar na primeira língua franca de contacto universal, entre os séculos XVI e XVII, e que, transportada apenas por um punhado de soldados, mercadores, aventureiros e piratas, tenha deixado traço da sua presença um pouco por toda a parte como língua de contacto entre o Oriente e o Ocidente. Que de forma tão desordenada e dispersa, à margem de qualquer controlo político, tenha deixado vocábulos nas regiões mais improváveis, e em troca tenha incorporado tão profusamente variantes dos vocabulários visitados, entre eles os africanos e os ameríndios, ou que ainda hoje continue a possibilitar alterações sintácticas arrojadas no interior da própria estrutura sem perder o carácter, o que permite que seja falada por cerca de 200 milhões de pessoas, sendo a terceira língua europeia mais difundida e a sétima mais falada à escala do Mundo.
A história vem em todos os manuais, não vale a pena repeti-la senão em condensado - Um falar neo-latino, comum à actual Galiza e à província do Minho, desenvolveu um certo carácter lírico subtil e uma certa narrativa própria, e no século XII, uma parte dessa primitiva linguagem cindiu-se, desceu rente ao mar, a toque de espada, a caminho de Lisboa, e lá no Sul, por acaso, sem grande resistência, esperava-o o árabe com o qual conviveu e de quem tirou música e vocábulos. Quando o Atlântico chama os portugueses para os Descobrimentos, é uma língua ainda rude e arcaica, mas já bem consolidada na sintaxe e na morfologia, a que embarca nas caravelas. Dois séculos volvidos, e o português voltará, depois dos naufrágios e de ter visto as estrelas de quase todo o Globo, transformada na língua da exaltação e do Império Universal, a que Camões acabou por dar genialidade não só no elogio erudito e alatinado de "Os Lusíadas", mas também na subtileza lírica dos poemas de sentimento e amor. Ao lado do português dos comerciantes, guerreiros, mercadores de escravos e piratas devotos, à medida da ideologia de então. O que quer dizer que e língua estava pronta para se transformar num instrumento poderoso de domínio, paredes meias com o rosto oficial da civilização, segundo a lógica implacável do tempo. Durante dois séculos, o português encontrou-se na situação de língua imperial. A língua, cujo som parece não possuir ossos que a sustentem, foi capaz disso.
Mas não foi capaz de manter no terreno as outras façanhas que o rodar dos tempos exigiam. Metrópole demasiado escassa para um corpo demasiado grande e sobretudo demasiado disperso, por vezes até impalpável, a partir do século XVIII, o país não acompanharia o passo das nações mais desenvolvidos, em termos de indústria, cultura e civilização, e ficaria para trás. Naturalmente que a Língua também ficou. Ficou prisioneira da sua prosódia barroca e circular, sua sintaxe repetitiva, suas imagens arcaicas, rente aos salmos, às rezas e à imagem das flores campestres. Data daí a matriz do recurso aos artifícios da linguagem abstracta para evitar a vida, ao primado da forma sobre o conceito, da divagação sobre a Filosofia, do desenho da frase sobre a densidade do argumento. O que quer dizer também que data desse tempo a língua que formou o nosso modo profundo de dizer, que se pôs a resistir, e tem vindo a refluir às ondas, pelo Século XX adiante. Quando menos se espera, a nossa carruagem barroca, escura e engalanada, reaparece, e demora sempre a partir mais do que convém.
Aliás, a língua escreve-nos profundamente, ou o tempo em simultâneo escreve nela o que em nós inscreve. Talvez essa contiguidade de causa e efeito justifique a tradicional defesa rústica de grandezas inventadas, o que em relação às línguas se traduz com frequência em termos de desejo de imobilidade. Curiosamente, num país, criado por uma língua que se fez de assimilação natural com o diferente e o longínquo, a perspectiva deliberada de assimilar, de recriar, de transformar, ou de inventar em torno dela, costuma ser interpretado como uma hipotética perda de vitalidade e até de natureza. O receio de ceder, de negociar, de incorporar, de criar em conjunto, e ao fim ao cabo, o medo de modernizar, continua a ser uma constante. Essa não é uma prerrogativa portuguesa, mas entre nós, pelo alcance simbólico, que a questão da língua atinge, torna-se bastante surpreendente observar como parte da população culta reage face à eventualidade de mudança. Todo o neologismo começa por aparecer com o labéu de corpo infecto. Ao contrário da vertente do português de África ou do Brasil, o português da Europa, prefere absorver expressões estrangeiras, na íntegra, sem as traduzir nem lhes tocar. O que não deixa de suscitar interpretações curiosas sobre a forma como o português olha o Mundo, empresta de si ao Mundo, e dele tão mal se sabe servir.
Seja como for, nunca a língua portuguesa, se encontrou à beira de se ossificar. À margem da batalha do purismo, que remete para universos conservadores e tem como horizonte ambientes arcaicos e míticos, sempre houve uma corrente subterrânea imparável, aberta à viagem, à contaminação e ao desejo de experimentar o diferente e de o fazer seu. Durante o século XIX, escritores como Almeida Garrett e Eça de Queirós, deram conta dessa boa vulnerabilidade da língua, tendo incorporado léxicos novos e modernizado a sintaxe. O movimento simbolista e depois o modernista descompuseram a língua, subverteram-na, recriaram-na, urbanizaram-na, em correlato directo com uma franja da sociedade portuguesa que conseguia impulsionar através das Artes Plásticas e da Poesia, um movimento vanguardista notável. Almada Negreiros e Fernando Pessoa nascem desse movimento que escreve uma língua desejosa de transpor fronteiras. A aventura de Pessoa nasce aí mesmo, na confluência da prática de duas línguas, a inglesa, sua instrutora escolar e literária, e a portuguesa, familiar, dramática e densamente oculta. Aí nasce e cresce Pessoa para a sua infinita inquietação de viagem. E com ele o sintoma duma outra forma de língua que não havia.
Aliás, a parte mais significativa da viagem literária portuguesa ao longo do século XX dá conta da tentativa de desinibição persistente na realização plástica duma língua que se transformava no sentido da modernidade, pela abertura, desestrutura, reinvenção, contaminação pelas outras línguas e outras linguagens provenientes do contacto voluntário ou forçado com o Mundo. Depois da Segunda Guerra, foi primeiro a emigração para a América do Norte e América do Sul, depois o exílio político e a emigração para países da Europa que abriram os olhos com que se produziu um novo corpo da língua portuguesa, dispersa pelo Mundo duma outra forma. Porém, terão sido as guerras colónias de África, o motor mais forte na alteração do modo de pensar e de dizer, já que se tornou necessário que a antiga língua imperial passasse sob as botas ensanguentadas dos soldados portugueses, abandonadas no capim, para que se recolhesse ao seu lugar não hegemónico. A língua que regressa de África, com a eclosão do 25 de Abril, é uma língua de alegria e de liberdade, mas bastante humilde e pronta à fraternidade, porque trabalhada pela dor. Aliás, a Literatura portuguesa actual, nas suas formas várias, encontra-se ainda sob o impacte desse momento longo de treze anos, que só em parte já passaram. Em metamorfose para uma nova era, entre outros, Manuel Alegre, poeta sem distância entre a língua e a vida, tinha soltado o grito de testemunha por um "Nambuangongo" invisível.
Nesse domínio, existe uma asserção atribuída a Cervantes bastante reveladora. Terá o autor de El Quijote dito, ou mesmo deixado escrito, que "O Português é o Espanhol sem ossos". Os próprios portugueses o repetem numa versão porventura mais próxima do original - "El portugués es el castellano sin huesos" - para melhor saborearem a ironia ou o despeito que desencadeia.
Claro que existe neste raciocínio uma redução própria de vizinhos bastante curiosa, mas não me parece que esta seja uma afirmação propriamente difamatória, e além do mais contém em si elementos que permitem iluminar traços distintivos daquilo que é a nossa fala. É que, para os outros - e a língua nasce em nós mas dirige-se para os outros - antes de ser um sentido, ela é, primeiro que tudo, um som. E não deixa de ser verdade que em comparação com as vértebras e as formações galopantes da língua espanhola de Espanha, a língua portuguesa desdobra-se como um corpo falado suave. A imagem é primitiva, e pode roçar o simplório, mas é verdade que, comparando as duas mais importantes línguas ibéricas, em termos de som, o espanhol contém no seu andamento uma espécie de cavalo a trote, várias patas movendo-se rápida e sacudidamente, sua crina altiva, sua unha protegida e ferrada. Enquanto que o som do português, nasalado e gutural, íntimo e grave, por vezes soturno, como o russo ou o polaco, desenvolve-se como a modulação dum líquido que corre. Claro que há muitos tipos de líquido e muitos tipos de curso. Nós, pela proximidade, como não poderia deixar de ser, associamo-lo à ondulação do mar. Um vaivém contínuo e grave, rápido com ar de lento, intenso com som de esbatido, faz do seu fluxo frásico, um corpo quase horizontal. Deduza-se o que é possível deduzir da eventual asserção de Cervantes - O português nada tem a ver com o espanhol, nem dele faz parte. Ou vice-versa. As estruturas profundas das duas línguas são diferentes, as suas naturezas enquanto fala e idioma, são distintas. Essa distinção é de vária ordem e pode ser descrita. Mas para simplificar a poética ensina que existem metáforas. Assim sendo, aceite-se que a ossatura do Português é feita de uma outra matéria com outra consistência. Ou que à consistência suave do seu som, corresponda em termos de vitalidade, uma outra energia.
Só assim se compreenderá que o português, falado por menos de um milhão de indivíduos, na altura dos Descobrimentos, se tenha expandido a ponto de se transformar na primeira língua franca de contacto universal, entre os séculos XVI e XVII, e que, transportada apenas por um punhado de soldados, mercadores, aventureiros e piratas, tenha deixado traço da sua presença um pouco por toda a parte como língua de contacto entre o Oriente e o Ocidente. Que de forma tão desordenada e dispersa, à margem de qualquer controlo político, tenha deixado vocábulos nas regiões mais improváveis, e em troca tenha incorporado tão profusamente variantes dos vocabulários visitados, entre eles os africanos e os ameríndios, ou que ainda hoje continue a possibilitar alterações sintácticas arrojadas no interior da própria estrutura sem perder o carácter, o que permite que seja falada por cerca de 200 milhões de pessoas, sendo a terceira língua europeia mais difundida e a sétima mais falada à escala do Mundo.
A história vem em todos os manuais, não vale a pena repeti-la senão em condensado - Um falar neo-latino, comum à actual Galiza e à província do Minho, desenvolveu um certo carácter lírico subtil e uma certa narrativa própria, e no século XII, uma parte dessa primitiva linguagem cindiu-se, desceu rente ao mar, a toque de espada, a caminho de Lisboa, e lá no Sul, por acaso, sem grande resistência, esperava-o o árabe com o qual conviveu e de quem tirou música e vocábulos. Quando o Atlântico chama os portugueses para os Descobrimentos, é uma língua ainda rude e arcaica, mas já bem consolidada na sintaxe e na morfologia, a que embarca nas caravelas. Dois séculos volvidos, e o português voltará, depois dos naufrágios e de ter visto as estrelas de quase todo o Globo, transformada na língua da exaltação e do Império Universal, a que Camões acabou por dar genialidade não só no elogio erudito e alatinado de "Os Lusíadas", mas também na subtileza lírica dos poemas de sentimento e amor. Ao lado do português dos comerciantes, guerreiros, mercadores de escravos e piratas devotos, à medida da ideologia de então. O que quer dizer que e língua estava pronta para se transformar num instrumento poderoso de domínio, paredes meias com o rosto oficial da civilização, segundo a lógica implacável do tempo. Durante dois séculos, o português encontrou-se na situação de língua imperial. A língua, cujo som parece não possuir ossos que a sustentem, foi capaz disso.
Mas não foi capaz de manter no terreno as outras façanhas que o rodar dos tempos exigiam. Metrópole demasiado escassa para um corpo demasiado grande e sobretudo demasiado disperso, por vezes até impalpável, a partir do século XVIII, o país não acompanharia o passo das nações mais desenvolvidos, em termos de indústria, cultura e civilização, e ficaria para trás. Naturalmente que a Língua também ficou. Ficou prisioneira da sua prosódia barroca e circular, sua sintaxe repetitiva, suas imagens arcaicas, rente aos salmos, às rezas e à imagem das flores campestres. Data daí a matriz do recurso aos artifícios da linguagem abstracta para evitar a vida, ao primado da forma sobre o conceito, da divagação sobre a Filosofia, do desenho da frase sobre a densidade do argumento. O que quer dizer também que data desse tempo a língua que formou o nosso modo profundo de dizer, que se pôs a resistir, e tem vindo a refluir às ondas, pelo Século XX adiante. Quando menos se espera, a nossa carruagem barroca, escura e engalanada, reaparece, e demora sempre a partir mais do que convém.
Aliás, a língua escreve-nos profundamente, ou o tempo em simultâneo escreve nela o que em nós inscreve. Talvez essa contiguidade de causa e efeito justifique a tradicional defesa rústica de grandezas inventadas, o que em relação às línguas se traduz com frequência em termos de desejo de imobilidade. Curiosamente, num país, criado por uma língua que se fez de assimilação natural com o diferente e o longínquo, a perspectiva deliberada de assimilar, de recriar, de transformar, ou de inventar em torno dela, costuma ser interpretado como uma hipotética perda de vitalidade e até de natureza. O receio de ceder, de negociar, de incorporar, de criar em conjunto, e ao fim ao cabo, o medo de modernizar, continua a ser uma constante. Essa não é uma prerrogativa portuguesa, mas entre nós, pelo alcance simbólico, que a questão da língua atinge, torna-se bastante surpreendente observar como parte da população culta reage face à eventualidade de mudança. Todo o neologismo começa por aparecer com o labéu de corpo infecto. Ao contrário da vertente do português de África ou do Brasil, o português da Europa, prefere absorver expressões estrangeiras, na íntegra, sem as traduzir nem lhes tocar. O que não deixa de suscitar interpretações curiosas sobre a forma como o português olha o Mundo, empresta de si ao Mundo, e dele tão mal se sabe servir.
Seja como for, nunca a língua portuguesa, se encontrou à beira de se ossificar. À margem da batalha do purismo, que remete para universos conservadores e tem como horizonte ambientes arcaicos e míticos, sempre houve uma corrente subterrânea imparável, aberta à viagem, à contaminação e ao desejo de experimentar o diferente e de o fazer seu. Durante o século XIX, escritores como Almeida Garrett e Eça de Queirós, deram conta dessa boa vulnerabilidade da língua, tendo incorporado léxicos novos e modernizado a sintaxe. O movimento simbolista e depois o modernista descompuseram a língua, subverteram-na, recriaram-na, urbanizaram-na, em correlato directo com uma franja da sociedade portuguesa que conseguia impulsionar através das Artes Plásticas e da Poesia, um movimento vanguardista notável. Almada Negreiros e Fernando Pessoa nascem desse movimento que escreve uma língua desejosa de transpor fronteiras. A aventura de Pessoa nasce aí mesmo, na confluência da prática de duas línguas, a inglesa, sua instrutora escolar e literária, e a portuguesa, familiar, dramática e densamente oculta. Aí nasce e cresce Pessoa para a sua infinita inquietação de viagem. E com ele o sintoma duma outra forma de língua que não havia.
Aliás, a parte mais significativa da viagem literária portuguesa ao longo do século XX dá conta da tentativa de desinibição persistente na realização plástica duma língua que se transformava no sentido da modernidade, pela abertura, desestrutura, reinvenção, contaminação pelas outras línguas e outras linguagens provenientes do contacto voluntário ou forçado com o Mundo. Depois da Segunda Guerra, foi primeiro a emigração para a América do Norte e América do Sul, depois o exílio político e a emigração para países da Europa que abriram os olhos com que se produziu um novo corpo da língua portuguesa, dispersa pelo Mundo duma outra forma. Porém, terão sido as guerras colónias de África, o motor mais forte na alteração do modo de pensar e de dizer, já que se tornou necessário que a antiga língua imperial passasse sob as botas ensanguentadas dos soldados portugueses, abandonadas no capim, para que se recolhesse ao seu lugar não hegemónico. A língua que regressa de África, com a eclosão do 25 de Abril, é uma língua de alegria e de liberdade, mas bastante humilde e pronta à fraternidade, porque trabalhada pela dor. Aliás, a Literatura portuguesa actual, nas suas formas várias, encontra-se ainda sob o impacte desse momento longo de treze anos, que só em parte já passaram. Em metamorfose para uma nova era, entre outros, Manuel Alegre, poeta sem distância entre a língua e a vida, tinha soltado o grito de testemunha por um "Nambuangongo" invisível.
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
tu não viste nada em Nambuangongo.
"Tu não viste nada" - Era a acusação que se fazia a um país inteiro que fingia não ver. A Literatura portuguesa mais viva e mais elaborada entre nós, continua a sair dessa brecha recente que uns testemunharam, outros viveram em diferido, noutros locais e de outros modos, por vezes não menos violentos. E na sua substância íntima, a língua portuguesa que se fala hoje ainda é essa, a da testemunha dum corte tardio, injusto para ambos os lados, mas que deixou uma capacidade de ver o mundo, mesmo longínquo, por uma lente fraterna, agora que os locais de violência bem mais visíveis, não falam só português, mas também inglês, francês, espanhol, russo e até alemão, como há vinte anos não se imaginava.
Na verdade, em cada dia nasce uma nova era, um novo mundo, e possivelmente cada língua, em cada momento, é sempre outra. Os países africanos que falam a língua portuguesa - ou que ainda legitimamente duvidam sobre se a devem falar e escrever ou não - têm novas realidades para contar, outro sofrimento, outra guerras intermináveis, e também outro tipo de esperança e outra visão do seu próprio mundo. Para o exterior, porém, ainda o dizem em português. Os portugueses também falam em português do que testemunham em África, chamando a esses países, em termos de língua, países irmãos. Mas não vai ser fácil manter esse laço.
É que esta língua que se fala hoje em sete países - ou oito, se assim o entenderem os timorenses - e dá corpo a várias Literaturas e ocupa o sétimo lugar no Mundo, atravessa um estranho tempo de dissensão entre a matriz europeia e a sua descendência mais vistosa. Como se sabe, o Brasil contribui com 160 milhões de falantes, para a totalidade dos 200 milhões da mesma fala, ocupa sozinho dois terços dum continente, tem uma economia indomável, para além duma Indústria de Artes invejável e uma Literatura poderosa. A proximidade com os Estados Unidos fornece-lhe um modelo avassalador que deseja seguir, e a sua mundividência, própria duma sociedade recente, revela uma vitalidade de fábula. Além de que a criatividade da vertente da sua fala é imensa. Compreende-se. - Ainda que não o declare, o Brasil político sente-se, por direito próprio, apoiado na grandeza geográfica e dimensão da sua população, como o novo dono da língua, e essa pretensão que não está claramente sobre a mesa, afinal está sob a mesa. Também neste campo, Portugal e o Brasil, colocam-se diante do tabuleiro, movendo as pedras, como adversários, sem o dizerem. Só assim se entende, as comédias que se têm desenrolado, em torno do Acordo Ortográfico assinado em 1990, ou da celebrada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa criada em 1994, até agora, para nada.
Naturalmente que uma língua que move entre 300 mil a 400 mil vocábulos, que tem uma plasticidade sintáctica e semântica provada, tanto remota quanto recentemente, não corre o risco de desaparecer, nem de minguar a sua criatividade nem as suas Literaturas, pela ausência de elementos estruturais de coesão. Mas corre o de se enfraquecer, perder vitalidade, dissolver-se como força linguística válida no diálogo das culturas, e sair do número das línguas mais faladas onde por direito se encontra, tornando muito mais difícil grande parte dos seus falantes dispersos acederem aos benefícios próprios das sociedades pós-industriais. É verdade que o Inglês é falado por quarenta e sete países, o francês por vinte seis, o árabe por vinte e um, o espanhol por dezanove, o português por sete. A pergunta que convém fazer é qual dos outros idiomas ocidentais, nos próximos anos, irá aumentar o números dos seus associados. Claro que as línguas são sempre muito mais fortes do que as suas políticas. Indomáveis e imprevisíveis como os seres humanos que as falam. Mas face a desentendimentos tão arrastados, em boa língua portuguesa, tão suave, tão de abraços, tão de música, uma pessoa é levada a colocar mais maldade do que vê à primeira vista, na frase atribuída a Cervantes.
Na verdade, em cada dia nasce uma nova era, um novo mundo, e possivelmente cada língua, em cada momento, é sempre outra. Os países africanos que falam a língua portuguesa - ou que ainda legitimamente duvidam sobre se a devem falar e escrever ou não - têm novas realidades para contar, outro sofrimento, outra guerras intermináveis, e também outro tipo de esperança e outra visão do seu próprio mundo. Para o exterior, porém, ainda o dizem em português. Os portugueses também falam em português do que testemunham em África, chamando a esses países, em termos de língua, países irmãos. Mas não vai ser fácil manter esse laço.
É que esta língua que se fala hoje em sete países - ou oito, se assim o entenderem os timorenses - e dá corpo a várias Literaturas e ocupa o sétimo lugar no Mundo, atravessa um estranho tempo de dissensão entre a matriz europeia e a sua descendência mais vistosa. Como se sabe, o Brasil contribui com 160 milhões de falantes, para a totalidade dos 200 milhões da mesma fala, ocupa sozinho dois terços dum continente, tem uma economia indomável, para além duma Indústria de Artes invejável e uma Literatura poderosa. A proximidade com os Estados Unidos fornece-lhe um modelo avassalador que deseja seguir, e a sua mundividência, própria duma sociedade recente, revela uma vitalidade de fábula. Além de que a criatividade da vertente da sua fala é imensa. Compreende-se. - Ainda que não o declare, o Brasil político sente-se, por direito próprio, apoiado na grandeza geográfica e dimensão da sua população, como o novo dono da língua, e essa pretensão que não está claramente sobre a mesa, afinal está sob a mesa. Também neste campo, Portugal e o Brasil, colocam-se diante do tabuleiro, movendo as pedras, como adversários, sem o dizerem. Só assim se entende, as comédias que se têm desenrolado, em torno do Acordo Ortográfico assinado em 1990, ou da celebrada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa criada em 1994, até agora, para nada.
Naturalmente que uma língua que move entre 300 mil a 400 mil vocábulos, que tem uma plasticidade sintáctica e semântica provada, tanto remota quanto recentemente, não corre o risco de desaparecer, nem de minguar a sua criatividade nem as suas Literaturas, pela ausência de elementos estruturais de coesão. Mas corre o de se enfraquecer, perder vitalidade, dissolver-se como força linguística válida no diálogo das culturas, e sair do número das línguas mais faladas onde por direito se encontra, tornando muito mais difícil grande parte dos seus falantes dispersos acederem aos benefícios próprios das sociedades pós-industriais. É verdade que o Inglês é falado por quarenta e sete países, o francês por vinte seis, o árabe por vinte e um, o espanhol por dezanove, o português por sete. A pergunta que convém fazer é qual dos outros idiomas ocidentais, nos próximos anos, irá aumentar o números dos seus associados. Claro que as línguas são sempre muito mais fortes do que as suas políticas. Indomáveis e imprevisíveis como os seres humanos que as falam. Mas face a desentendimentos tão arrastados, em boa língua portuguesa, tão suave, tão de abraços, tão de música, uma pessoa é levada a colocar mais maldade do que vê à primeira vista, na frase atribuída a Cervantes.
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* Publicado no dossier "Portugal, Proue de l'Europe",
Revue des Deux Mondes (Paris, março 2000)
Revue des Deux Mondes (Paris, março 2000)
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