Terá sido um dos lançamentos mais retumbantes
da história da literatura portuguesa. Valter Hugo Mãe apresentou no domingo,
dia 6 de outubro, em Lisboa, a sua obra mais recente, «A Desumanização». O evento
teve lugar no Teatro Maria Matos, cujos quase 500 lugares disponíveis se viram
lotados por uma multidão heterogénea, com representantes de praticamente todos
os escalões etários.
A abertura de portas estava prevista para as
16h30, meia hora antes do início do espetáculo. No entanto, foi apenas
precisamente às 17h00 que o público foi autorizado a entrar na sala. O que
poderia significar um atraso substancial em todo o processo não se verificou,
pois em apenas dez minutos praticamente todas as pessoas ocuparam os seus
lugares e pôde ser dado o tiro de partida.
Ao contrário do anunciado (e que era um dos
maiores motivos de expectativa do evento), a artista plástica Joana Vasconcelos não fez
parte do que deveria ser um trio de parceiros de conversa de Valter Hugo Mãe.
Que nos tenhamos apercebido (mas admitimos poder estar enganados), não foi
avançada qualquer explicação para a ausência de peso. O trio ficou assim
reduzido ao duo Catarina Homem Marques e Pedro Vieira, que são, entre outras
coisas, apresentadores do Canal Q.
Talvez por esse mesmo facto, o registo
escolhido para a conversa foi o do humor. Os dois apresentadores deram início
ao espetáculo com um monólogo a dois (se é que tal é possível), à moda dos talk-shows norte-americanos. Afirmaram,
entre outras coisas, que a carreira de Valter Hugo Mãe estava em declínio, pois
no passado tivera como apresentador dos seus livros, por exemplo, Mário Soares,
e agora não dispunha de mais do que eles próprios. Não faltou também o
obrigatório humor político: para Pedro Vieira, «A Desumanização» parece mais um
programa de governo do que o título de uma obra literária.
O humor contínuo e ostensivo dos
apresentadores, apesar de ter arrancado muitas gargalhadas à assistência,
ameaçou seriamente o protagonismo do… protagonista. Valter Hugo Mãe começou por
sentir alguma dificuldade em impor as suas ideias perante as constantes rajadas
do seu par de tertúlia. No entanto, com o passar do tempo, o autor nascido em
Angola, mas vila-condense de estatuto, foi capaz de tomar cada vez mais as
rédeas da conversa. Tal poderá ter acontecido por a fonte humorística dos
apresentadores ter secado, mas acreditamos mais que foi mesmo a capacidade de
expressão e o carisma de Valter Hugo Mãe a dar origem à reviravolta.
Da quase uma hora que durou a conversa saíram
da boca do autor de «A Desumanização» mais uma boa mão-cheia de frases
lapidares. Deixamos aqui algumas: «[Explicando o porquê de ter escrito o livro
no estrangeiro] Não estou farto de Portugal, estou farto é de mim»; «Deus é uma
mulher. Nunca acreditei em Deus, mas estou quase a acreditar em alguma coisa.
Quanto mais me desiludo com o mundo, mais acredito que haverá algo melhor. A
morte pode ser a grande oportunidade»; «Hoje sinto que quero sobretudo o
sossego»; «O meu livro anterior era muito doce. Agora quis escrever algo
amargo»; «Sou mais cristão do que a maior parte dos católicos»; «Ser adulto é
reclamar o direito às nossas convicções, mesmo que pareçam estranhas»; «Hoje
sou sobretudo a memória de alguém que já foi boa pessoa».
Perante uma plateia, como já se disse, repleta,
mas onde apenas foi possível descortinar um VIP, nem mais nem menos que o
antigo secretário de estado da Cultura, Francisco José Viegas, Valter Hugo Mãe
deixou alguns agradecimentos sentidos. Um foi dedicado à Porto Editora, por lhe
ter dado «tempo e sossego para escrever o livro» e lhe ter deixado escolher a
artista que fez a capa. Outro teve como destinatário a Ryanair, que lhe
permitiu viajar a preços módicos para a Islândia e a Croácia, países que viram
nascer a obra.
Valter Hugo Mãe conquistou claramente o seu
público. Conquistou-o quando incentivou uma mãe a não sair da sala para acalmar
o seu bebé chorão («Deixe-o chorar, deixe-o protestar, para que quando for
grande ele possa salvar o mundo.»). Conquistou-o quando fez a defesa e o elogio
da escola pública. Conquistou-o quando lamentou não saber jogar à bola como os
seus conterrâneos Fábio Coentrão e Hélder Postiga. E conquistou-o, até, quando
recorreu mais do que uma vez à palavra «coiso» para colmatar vocabulário que
lhe faltava.
Depois de o autor ter lido um pequeno excerto
do seu livro e antes da obrigatória sessão de autógrafos e da oferta de um poster-poema dedicado à obra, o público pôde
assistir a um miniconcerto de Rodrigo Leão e da sua banda, ao mesmo tempo que o
ecrã gigante em fundo passava imagens da paisagem islandesa. Valter Hugo Mãe,
de resto, ficou tão agradecido por ter um dos mais prestigiados músicos
portugueses no lançamento do seu livro, que se ofereceu para casar com uma
prima solteira qualquer «que ele tenha para lá». Ficámos sem saber se a oferta
foi aceite.
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