Valter Hugo Mãe: «Digital»
Quando o livro for apenas digital, estarão em perigo todas as traduções e será solicitada ao autor uma brevidade que vá ao encontro da especificação rigorosa dos assuntos e da falta de paciência do leitor.
A literatura correrá o risco de, mais do que nunca, se transformar abundantemente numa espécie de manifestação fugaz que procura o mesmo sucesso de um tema musical. Um só tema, breve, conciso, acerca de algo preciso, e que passe logo.
Ninguém vai sustentar a tradução de um livro que será pirateado. Apenas através dos apoios institucionais se justificarão as traduções para as mais diversas línguas, e isso levará a um mundo de decisões que independem completamente da lógica dos mercados que conhecemos.
Contudo, mais grave, será efectivamente a pressão para que os textos se abreviem. O universo digital suscita a capacidade de rarefacção, sendo certo que as novas gerações parecem acelerar-se nos modos de relacionamento com todas as obras. A fragmentação e a rapidez serão características quase essenciais para que um determinado texto proceda.
A música já padece grandemente desta vulnerabilidade. Os músicos parecem pressionados a voltar à lógica do single que, na verdade, no universo pop, existiu antes dos trabalhos de longa duração. O álbum, que ainda propõem, quase sempre passa desapercebido, inexplorado, dado como algo excessivo perante o que não se desenvolveu interesse nem paciência. Subitamente, o álbum tem algo de exagero intelectual, quando o vasto auditório se basta com guardar uma ou duas canções.
Os livros, que sempre estiveram sujeitos à impaciência do mundo, serão a ela submetidos dramaticamente. Estou certo de que um núcleo de leitores seguirá lendo os textos de grande fôlego, essas máquinas preguiçosas que implicam o empenho de quem lê. Mas também estou convencido de que as novas gerações estarão disponíveis sobretudo para uma literatura que, não perdendo o brilhantismo, se apresente como experiência substancialmente fugaz. No meio do desafio, o conto e a poesia serão géneros bem mais aptos a sobreviver do que o romance.
Lentamente, o mercado deixará de produzir em papel os livros que queremos ler. A indústria perderá o interesse em tal produto porque as vendas digitais subirão de tal modo que não se justificará o esforço das edições em papel. Resistirão casos em que o livro, como objecto, possa ser visto enquanto documento. Serão casos excepcionais. Por mais que queiramos o livro tradicional, o mercado já não no-lo vai fornecer.
Experimente procurar um disco muito específico para perceber que ele já só se vende na Internet, com custos elevados, porque só um grupo muito obstinado de gente está disposto a comprá-lo. O livro será sempre pior. Se considerar o facto de não existirem traduções, terá de imaginar os mercados nacionais como células sempre mais confinadas. O domínio da expressão inglesa ou do mandarim vão fazer-se sentir. Sim, acho que a pressão vai levar a que muito boa gente escreva directamente em inglês ou suporte pessoalmente a imediata tradução. Vai ser de um mesmismo insuportável.
Esta crónica foi publicada na Revista 2, edição de domingo 1 Dezembro 2013
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